sexta-feira, 9 de maio de 2008

Breves comentários à “Lei Crivella”

Contribuição: Isabel Elaine

Os pais não são obrigados a amar os filhos, decidiu o Superior Tribunal de Justiça em ação proveniente de Minas Gerais. Em seu voto, o ministro César Asfor Rocha, um dos julgadores da ação, repudiou a tentativa de quantificação do amor[1]. Agora, cabe ao Supremo, pela primeira vez em sua história, apreciar um caso dessa espécie. Com a derrota no STJ, o autor do pedido pleiteia, através do Recurso Extraordinário nº 567164, sob a égide constitucional, resguardar o seu direito à indenização por abandono afetivo paterno. Para o subprocurador-geral da República, Wagner de Castro Mathias Netto, em parecer sobre a lide em questão, “a iniciativa não merece prosperar”, e ressalta que “o mérito recursal envolve questão polêmica e controvertida, devendo ser apreciada com cautela pelo Judiciário. Este não pode dar guarida a mero sentimento de vingança, onde a criança representa instrumento para obtenção de indenizações que, inúteis para remediar a situação, atenderiam a sentimentos menores”. Ao que tudo indica, a Turma acompanhará a corrente majoritária.

Apesar da complexidade do tema, o nobre senador-cantor-engenheiro Marcelo Crivella pretende solucionar o problema do desamor paterno-filial através do Projeto de Lei nº 700/2007. Se aprovado, o texto trará nova redação ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Em completo desapreço às decisões contrárias aos seus interesses, o autor do projeto argumentou em seu site que “Alguns tribunais começam a condenar pais por essa negligência. Mas há decisões contrárias, o que gera insegurança jurídica. Isso será superado por essa lei que não deixará dúvidas quanto a esse dever maior dos pais”. No texto do projeto, comenta sobre a decisão do STJ, “Algumas decisões judiciais começam a perceber que a negligência ou sumiço dos pais são condutas inaceitáveis à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Por exemplo, o caso julgado pela juíza Simone Ramalho Novaes, da 1ª Vara Cível de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, que condenou um pai a indenizar seu filho, um adolescente de treze anos, por abandono afetivo. Por outro lado, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça não demonstrou a mesma sensibilidade (...)”.

Indiferente às análises dos maiores juristas do país sobre o assunto, o bispo da IURD resolveu que, além do dever de indenizar, o pai faltoso deverá cumprir até 6 meses de prisão pelo abandono afetivo. No § 2º do art. 4º da nova redação sugerida, o senador sugere que “Compete aos pais, além de zelar pelos direitos de que trata o art. 3º desta Lei, prestar aos filhos assistência moral, seja por convívio, seja por visitação periódica, que permitam o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da pessoa em desenvolvimento” (grifo não original). Ou seja, o abandono afetivo é suprido pela simples proximidade física entre pai e filho. A confusão é bem comum, talvez em razão do vocábulo adotado. O que se busca punir em ações dessa espécie não é o abandono em si, mas o desprezo afetivo. Um pai pode ser afetuoso a milhares de quilômetros – da mesma forma, um filho pode estar abandonado afetivamente ainda que em convívio direto com o genitor. Além de indenização e prisão, o projeto prevê a destituição do poder familiar na hipótese do abandono moral.

Em sua fundamentação legal, Crivella cita o art. 227 da Constituição Federal, que determina:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Noutros tempos, o texto constitucional aplicar-se-ia ao caso. Contudo, não podemos ignorar a existência das famílias monoparentais, cada vez mais comuns em nossa sociedade e amplamente reconhecidas na esfera jurídica. Uma criança pode ser criada somente pela mãe (ou pelo pai), sem prejuízos ao seu desenvolvimento. Portanto, o dever de convivência familiar pode ser suprido por um dos pais. Ademais, cita o disposto no Código Civil, em seu artigo 1.638, que determina a perda do poder familiar quando houver abandono (inc. II). Indubitavelmente, o disposto na legislação também diz respeito ao abandono moral. Contudo, para que haja a destituição do poder familiar, é necessário que outros bens jurídicos estejam ameaçados, não bastando a alegação do abandono meramente afetivo. Nem mesmo a escassez de recursos materiais põe termo à questão.

O PL 700/07 teve pouca repercussão. Dentre os que apóiam a proposta, está o deputado goiano Miguel Ângelo, também bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. Interessante frisar que o projeto foi proposto no final de 2007, época em que o tema estava a todo o momento na imprensa. Para o senador, a simples proposta de alteração é vantajosa, pois a redação coaduna com a ideologia religiosa que defende em sua igreja – muito importante para quem possui o eleitorado formado por evangélicos-, e lhe rende espaço na mídia. Dois coelhos em uma cajadada só. Todavia, se o senador sonha, realmente, em ver o problema resolvido de forma milagrosa, sugiro que siga as palavras do seu colega de IURD, bispo Renato Maduro: “A desestrutura familiar em muitos lares é fato - através da fé, há solução para qualquer problema”. Confie em sua fé e em seu bom senso, Crivella. Meia dúzia de novos artigos não resolverá a polêmica.

[1] REsp. n.º 757.411 – MG (2005/008564-3) – Rel. Min. Fernando Gonçalves – DJ 27.03.2006

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